sábado, 17 de fevereiro de 2018

EU E MEUS EUS




O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa


Há muitos eus em mim.
Por um lado
O eu lírico que me habita
Poetiza minha saga
Mas sabe de minha desdita.
Noutro viés
Outros eus digladiam entre si:
Santo versus profano
Nobre versus plebeu 
Múltiplas faces
De um único eu.
E nessa diversidade surreal 
Sou a soma de meu ideal.

Todos os dias
Uma parte de mim se ocupa em colher estrelas com as mãos
Essa parte sabe colher a delicada beleza das orquídeas
Viaja na imaginação
E sempre navega na cauda de cometas
Como se tivesse o destino das mãos.
Já a outra parte vive algemada pelo relógio
Cumpre horário
Paga boleto
Sabe a hora de chegar e a hora de partir
Sem poder decidir.
Essa parte de mim
Se divide na angústia
De ser livre ou ser normal.

Sou essa pessoa multifacetada
Dividida em mim mesmo
Mas não esmo.
Paradoxalmente,
Sou raiz cravada na realidade inevitável
Remanescente que se renova dia a dia
Cumprindo no osso ofício diário
O ciclo de cada estação.
Mas também sou ave de arribação
Acostumado a voar lonjuras
Pousar em ninhos distantes
Colher horizontes com os olhos
Ser amigo do rei em Pasárgadas errantes.

Na minha receita de felicidade  
Prefiro a leveza
Insustentável de meu ser.
Gosto de viver a parte que me cabe no Olimpo 
Sem medo de saber o que soma
O que sobra, o que é sombra
Ou assombra.

Minha parte normal é simples
É contida, é formal. 
A outra parte, a que não cabe em mim,
É irreverente, é plural.


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